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Rascunhos...apenas rascunhos e nada mais...

terça-feira, maio 06, 2008

AlmaLuz


O sol espreguiçava-se lentamente naquele dia. As árvores aproveitavam os primeiros raios da manhã para estirar os seus rugosos braços e os pássaros iniciavam uma melodiosa ode ao dia que nascera.
Aquele era o dia mais importante de todos. Não era hábito ganharem um dia inteirinho para passear e visitar todos os sítios importantes de AlmaLuz.
Luana não dormira nada. A ansiedade apoderara-se de si e de todos os pedacinhos do seu corpo, que se agitavam freneticamente. Passara toda a noite a imaginar tudo o que iria ver. Saltou da cama mal sentiu o cheiro quente de pão fresco na cozinha e foi tomar banho. A escolha da roupa foi a tarefa mais demorada! Não estava habituada àquela missão. Engoliu o pequeno-almoço, colocou o chapéu azul, que combinava com os seus olhos, e arrastou a mãe por um braço até à escola.
Todos os meninos vinham agitados e as conversas giravam em torno daquela expedição. Braços agitaram-se no ar em sinal de adeus. Beijos ruidosos e abraços apertados ocuparam os últimos segundos em frente do portão da escola.
O itinerário era deslumbrante e apetitoso. A menina já havia passado por muitos daqueles lugares. O seu pai costumava dizer em tom sábio e solene:
- Só nos conhecemos verdadeiramente quando conhecemos a nossa história e a história do espaço que nos rodeia.
Primeira paragem: Fonte dos Amores. A professora, sempre sorridente, explicava como aquela se tinha formado e aproveitava para relatar os acontecimentos importantes que com ela estavam relacionados: a história de amor entre Pedro e Inês, que todos conheciam e a que era dedicada a estátua colocada em frente à biblioteca, bem no centro da vila. Luana não ouviu todos os pormenores românticos e trágicos daquele amor, porque se distraíra com uma horrível nuvem de fumo cinzento escura que começara a brotar do meio de uns rochedos ali mesmo ao lado.
O fumo parecia levantar-se sorrateiramente para não ser descoberto e ia espalhando um cheiro desagradável que, quando abraçava as flores e as plantas, as matava impiedosamente.
Luana sentiu um aperto no coração como se alguma tragédia estivesse para acontecer. Todos em AlmaLuz tinham aprendido a respeitar cada ser vivo como se de uma pedra preciosa se tratasse! Ver tudo morrer daquela forma magoava-a tanto como ver a mãe triste ou o irmão chorar.
- …sabem que este lugar é muito conhecido e retratado em muitíssimos livros, nomeadamente… – informava a professora.
- Já viram aquilo? – interrompeu a menina, apontando com o dedo indicador o local de onde irrompia o fumo fatal – O que será?
A professora, um pouco aborrecida pela interrupção, voltou os olhos na direcção do dedo de Luana e imediatamente deitou as mãos à cara, proferindo em seguida:
- Lamentavelmente, iremos dar por terminada a nossa visita!
Não era difícil de prever que os alunos iriam manifestar o seu desagrado.
- Oh, professora! – gritaram em coro.
- Vamos continuar! – exclamava o Miguel – Prometi ao meu irmão que lhe levava um bolo da confeitaria Doces Nuvens!
- E eu prometi à minha mãe um postal da Torre ! – acrescentava a Carolina.
Luana e a professora Teresa pareciam não ouvir os comentários dos restantes. Continuavam estupefactas a observar aquele nevoeiro mortal.
Ao fim de alguns minutos, a docente ordenou:
- Dois a dois! Dêem as mãos! Façam uma fila! Iremos regressar neste preciso momento ao centro da vila. Andar rápido! Não quero que ninguém fique para trás!
A viagem de regresso fez-se praticamente em silêncio, cortado num momento ou noutro por alguns comentários em surdina.
- É triste, mas nós não podemos fazer nada!
- Pois, podíamos ter continuado o passeio…
- Esperei tanto pelo dia de hoje… não é justo.
À chegada à escola, a professora reuniu-os na sala de convívio e pediu que permanecessem em silêncio. Depois, saiu.
Aqui e ali viam-se algumas caras preocupadas, outras tantas descontentes, mas todos esperavam ansiosamente o regresso da professora. No entanto, ela não regressou mais àquela sala. Uma funcionária avisou-os de que poderiam ir embora, pois os pais já tinham sido avisados.
Quando Luana pôs o primeiro pé à saída da escola, percebeu que todos já sabiam o que tinha acontecido na visita estudantil: algumas pessoas discutiam o assunto em grandes grupos na esplanada do café, outras circulavam apressadamente e com um ar visivelmente preocupado. A menina não se lembrava de alguma vez ter visto os alegres visitantes de AlmaLuz assim: tristes e cabisbaixos.
Em casa, todos falavam do assunto. O pai assegurava que o Presidente da Câmara já tinha sido avisado, assim como a polícia, e já estavam a tentar resolver o assunto. O avô contava que há muitos anos também se tinha verificado a saída de um fumo estranho na zona da Fonte, mas na época não tinha sido tomada nenhuma medida, porque, entretanto, o fumo desaparecera.
Foram-se passando dias e dias, foram chamados cientistas estrangeiros muito entendidos nestes fenómenos e todos diziam o mesmo: os culpados eram os habitantes subterrâneos. O fenómeno era geral, não afectava só AlmaLuz.
Luana já tinha ouvido falar destes habitantes. As opiniões eram sempre muito negativas e, com todos estes acontecimentos, pioravam a cada dia que passava.
- Como é que alguém é capaz de fazer mal àquilo que o rodeia e que só lhe faz bem? – perguntou um dia à avó que tricotava baloiçadamente uma camisola para a neta.
- Penso, Luana, que eles não têm consciência do mal que provocam quer à Natureza quer a eles próprios…
- Sim, mas também nos estão a fazer mal a nós! Olhe o Pedro da escola! Está de cama, avó, com muita febre, a garganta a doer-lhe e o médico já disse que os pulmões dele estão completamente envenenados. A Catarina e a Joana ficaram hoje de cama e a avó sabe que há muitos mais amigos nossos que estão doentes por causa daquele maldito fumo.
- Luana, já estão a tratar disso. Não te preocupes! És muito nova, não te deves aborrecer com estas coisas! – disse a avó, tentando tranquilizá-la.
Os dias e os meses iam passando. O verde vivo e alegre de AlmaLuz tornara-se cinzento morto. Já quase ninguém saía à rua, excepto quando era realmente obrigatório. Os típicos passeios ao anoitecer extinguiram-se. Já ninguém reconhecia aquela vila!
A menina passou a acompanhar o pai sempre que ele ia às reuniões em que os habitantes eram informados das medidas que estavam a ser tomadas e do seu sucesso ou insucesso, na maioria das vezes. Várias coisas já tinham sido pensadas e feitas, mas nenhuma havia resultado.
Um dia, porém, já metade dos habitantes estava acamado, numa dessas reuniões, um cientista revelou que o seu grupo de trabalho tinha descoberto a solução: encontrados os locais de onde o fumo saía, estes seriam obstruídos com uma matéria que eles haviam criado.
- Isso é uma forma de remediar este problema, não é propriamente uma solução. O fumo por certo vai descobrir novas entradas. O que faremos nessa altura? – questionou uma das habitantes.
A pergunta não obteve resposta, embora tenha dado origem a um burburinho geral.
De facto, a solução encontrada pelos cientistas resultou: o fumo desapareceu da aldeia e, pouco a pouco, as plantas foram renascendo, as flores recuperando as suas cores e os habitantes melhorando o seu estado de saúde. AlmaLuz acabou por regressar ao seu estado habitual e grande parte dos habitantes tentou esquecer o sucedido.
Passou um ano inteiro e chegou novamente a Primavera. O mesmo cenário em frente da escola se repetiu e os meninos correram ansiosos para não perder um só momento daquele passeio que tinha sido interrompido no ano anterior.
Luana ia no fim da fila, observando minuciosamente os detalhes de cada sítio, de cada planta, de cada ser. Lembrava-se do terror provocado pelo fumo em cada uma daquelas coisas. Parou a observar umas pequenas gotas de água que saíam do chão. Deu uma gargalhada: a água costumava cair do alto e não o contrário! Questionou-se sobre os motivos de fenómeno tão estranho e já se preparava para ir a correr questionar a professora, quando reparou que aquela mesma água queimara tudo em que tinha tocado.
- Não pode ser! – exclamou.
Ajoelhou-se, arranjou com as suas pequenas mãos um espaço entre as nuvens em que os seus joelhos estavam pousados, e murmurou:
- O que andarão eles a fazer desta vez?
Ao longe via um grande planeta azul e verde. Sabia que era ali que moravam os habitantes subterrâneos e o pai já lhe tinha dito que aquele lugar se chamava Terra! Não sabia como era possível que fizessem aquilo com eles próprios… Levantou-se e correu a contar à professora.
- Espero que não seja tarde demais.

Não está uma obra de arte...e de cada vez que o leio, gosto ainda menos dele...mas como fui criando o hábito de rasgar tudo o que escrevo, esta foi a forma encontrada para ir guardando alguma coisa... A ideia base surgiu aquando de um concurso subordinado ao tema do Ambiente e da Poluição...escusado será dizer que o texto nunca chegou a ser enviado, até porque na altura não estava sequer materializado...

Ainda precisa de se transformar, de se corrigir...mas o tempo tratará disso, pelo menos é assim que penso. Aceito sugestões de quem as quiser dar...

domingo, maio 04, 2008

Adeus!

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.



Eugénio de Andrade
A minha vida ficou de pernas para o ar...